“A Vegetariana” é uma instigante história sobre adentrar no mundo do vegetarianismo – e todas os preconceitos que isso traz consigo.
“Eu tive um sonho”.
É desse jeito que Yeong-hye, uma pacata sul-coreana, justifica a sua decisão de ser vegetariana. Sua mudança de hábito incomoda a todos: sua mãe, sua irmã, seu pai e seu marido. Todos a questionam diariamente sobre esse suposto radicalismo e tentam forçá-la a mudar ideia. Afinal de contas, eles pensam, Yeong-hye parece tão tranquila, até mesmo apática… Em algum momento, ela vai acabar cedendo. Em algum momento, ela não vai resistir. Surpreendentemente, a serena Yeong-hye mostra que também pode ser uma mulher convicta. Mesmo passando por diversos tipos de violências (que partem especialmente dos homens que a cercam), ela se mantém firme na sua escolha e parece não se deixar abalar.
Essa é a premissa do livro A Vegetariana, de Han Kang, que venceu o prêmio de Man Booker International Prize de 2016. Com a sociedade discutindo cada vez mais sobre o vegetarianismo e o direito ao próprio corpo, a obra é inegavelmente atual e tem sido bastante comentada. A publicação, na verdade, foi lançada em 2007, mas só chegou ao ocidente em 2015, quando ganhou uma edição em inglês.
A Vegetariana é dividido em três partes, com a primeira narradando a partir do ponto de vista do marido de Yeong-hye. A segunda épelo seu cunhado e a terceira pelo ponto de vista de sua irmã. Não temos acesso ao que realmente pensa a personagem central da trama, o que torna a narrativa ainda mais intrigante para o leitor. É interessante perceber que, mesmo sem termos contato com as percepções de Yeong-hye (e considerando ainda que a personagem fala muito pouco), conseguimos sentir empatia com a protagonista, justamente por conhecermos bem o seu entorno e todas as violências que ela passou.
É difícil não sentir alguma angústia com as situações narradas, especialmente quando se trata da primeira parte do livro, contada por um homem inegavelmente medíocre e abusador. Sabemos exatamente tudo que ele pensa e todas as suas motivações – mesmo assim, é tarefa árdua conseguir sentir alguma simpatia por ele.

Igualmente difícil é tirar conclusões prontas da obra, que provoca reflexões densas. Do começo ao fim, é possível interpretar os sonhos e as decisões de Yeong-hye de múltiplas maneiras. A leitura provoca questionamentos que ultrapassam o tema da alimentação e passam pelo feminismo, o direito ao próprio corpo, o casamento e a relação com a natureza. Como descreveu o jornal The Guardian: “Este romance é uma festa. Sensual, provocador, recheado de imagens potentes e questões perturbadoras. Frase a frase, é uma experiência extraordinária”. No final das contas, A Vegetariana é principalmente sobre as muitas formas de resistir.
Sobre a Autora
Chama atenção o fato da obra ter sido escrito por uma mulher sul-coreana, já que não nos deparamos frequentemente com essa perspectiva. Nascida em 1970, Han Kang é romancista, poeta, artista musical e tem mais de 10 obras publicadas. É sem dúvidas uma das escritoras mais aclamadas da sua geração na Coreia do Sul e, inclusive, chegou a ser comparada com Franz Kafka, autor de A Metamorfose.
Em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, a autora declarou que se sentiu honrada por todo o reconhecimento internacional que recebeu nos últimos anos (especialmente pelo prêmio Man Booker International Prize), mas garante que precisa da sua privacidade: “Necessito da minha solidão, das minhas horas para dedicar ao que faço. Felizmente, passada a febre inicial, as coisas voltaram à normalidade e eu consegui recuperar o meu método e, até certo ponto, o conforto do meu cantinho”.
Esperamos que esse conforto renda ainda outros romances complexos e viciantes.